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A arte da observação

Quem já me acompanha há algum tempo sabe que além de outros ainda dou algumas aulas de piano/música para crianças. Há 2 semanas tenho a pequena Ana de 7 anos.

Uma garotinha de tez bastante branca, cabelos escuros, sardas na pele e com uma beleza um tanto exótica. Pareceu-se bastante delicada: sua forma de caminhar, de sentar-se. Completamente diferente de sua irmã, que veio acompanhá-la até a porta – à primeira vista diria que são como água e fogo.

Ana só conhece aulas de máscara na escola e com classe reduzida. Sua professora também praticamente só aparece de máscara…penso que a pandemia deixa algumas marcas, pelo menos por um tempo. Mas parece que esse fato não tem intimidado Ana, pois a pequena quis ter sua primeira aula comigo, dentro da sala sozinha, sem a presença do pai. A aula de piano é individual.

Normalmente crianças dessa faixa etária, preferem a presença de um dos pais durante a aula por um período de tempo até que se sintam mais à vontade com a professora desconhecida…pelo menos por 1 mês (1 aula por semana). Mas pronto (como dizem os portugueses), Ana esteve na sua primeira aula, sem o menor sinal de constrangimento por estar só (sem os pais). Um pouco tímida sim, mas não medrosa. Primeira observação e constatação: a menininha é destemida 🙂 Delicada e forte.

Ana sentou-se ao piano e prestou atenção ao que eu lhe explicava, fazia suas tentativas com motivação e pensava uns segundinhos a mais a concretizar cada atividade (isso diz minha experiência de 30 anos como professora de música). Segunda observação: Ana necessita fazer tudo bem, tende a ser perfeccionista. Prefere levar mais tempo e fazer bem sua tarefa do que rápido e mais ou menos.

Segunda aula. Ana traz sua tarefa de casa feita, sua delicadeza permanece, sua forma de falar é suave, mas definida. Em uma atividade em bater palmas alto e baixinho, o baixinho de Ana era realmente bastante baixo, quase mudo…que gracinha. Daí podemos observar o grau de percepção auditiva da criança e como ela percebe esse mundo à sua volta. O que é “alto” para uma criança? O que é “baixo”? Qual a diferença entre um som alto e um som baixo para aquela criança?

Ana se mostra calma, ao desenhar traços, o faz com cuidado, mas firme. Bonito e correto tinha de ficar… Penso

“Ana ainda não percebeu como se faz os traços cruzados nos lugares corretos”, me corrijo imediatamente: “Ana não percebeu? Não…Você profa. Simone ainda não lhe mostrou de forma clara o suficiente para que ela os percebesse!”

Neste momento sinto orgulho de mim mesma. Não corrigi os erros de Ana desta primeira vez. Afinal, eu é que tenho de lhe explicar com mais clareza para que ela possa perceber. Esteticamente os traços estavam muito bem feitos 🙂

A observação da criança e a autocrítica do adulto tem sempre de caminhar juntos.

Com uma conversa com o pai, ouvi que Ana é muito calma, mas teimosa (o que eu suponho determinada ao invés de teimosa). Que para ela é importante fazer tudo corretamente, por isso gasta às vezes muito tempo nas tentativas. Em outras palavras o pai me descreve uma criança com tendências perfeccionistas. Ao continuar o pai conta também que há um certo conflito com a irmã por terem personalidades muito diferentes: a irmã é agitada, barulhenta e mais objetiva nas suas escolhas e ações.

Como pode-se observar em tão pouco tempo: 2 aulas de poucos minutos…o que é esse poder de observação?

Resumidamente eu diria que para um alto poder de observação é importante ter gosto pelo seu trabalho e consciência do que isso significa, para além de que quanto mais experiência, melhor o poder de análise.

Esse poder de análise, esse gosto por conhecer quem é este seu aluno, essa criança que lhe está sendo confiada, é importantíssimo. Ele é decisivo para o sucesso do seu trabalho como profissional, para sua percepção como pais e para o desenvolvimento e bem estar da criança e de todos.